O Arteiro

O Arteiro

(conto urbano)

Mário de Méroe

Miguelzinho, conhecido em todo o bairro, era o que se poderia chamar de menino "sadio", ou seja, esperto e sagaz, que aprontava artes e travessuras, próprias de sua idade. Após as aulas, ele gostava de brincar de guerra, na qual, invariavelmente, exercia a difícil e corajosa função de artilheiro. Seus "inimigos" eram os motoristas que passavam pela rua, dirigindo seus veículos caprichosamente limpos e polidos. Mas para Miguelzinho, eram tanques alemães, pilotados por perigosos nazistas, que ameaçavam a paz mundial...

Precocemente amadurecido, ele perambulava, pensativamente, pelo grande quintal de sua casa, arquitetando uma forma de deter a terrível ameaça que pairava sob os céus da Freguesia...

Muito patriota, logo "sentiu o chamado", e traçou um plano infalível para bombardear o poderoso adversário, reduzindo-o a pó. Se conseguisse, seria o herói do bairro, salvador da humanidade, admirado por vizinhos e todos os outros sobreviventes.

Focado nesse grandioso projeto, Miguelzinho nem dava atenção às gentilezas de Cacildinha, sua colega de escola e vizinha, que o cobria de mimos e elogios, convidando-o sempre para tomar água de coco gelada..., mas o herói tinha planos mirabolantes: já se imaginava recebendo a Ordem do Mérito Militar, que seria entregue por nada menos que a presidente Di Ulma em pessoa...

Assim, o grande estrategista definiu seu plano de ação: provisionou "munição bélica", conseguida de uma barraquinha das imediações: cocos verdes, vazios, que ele numerou de conformidade com um código ordinal secreto: 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, etc, cada um deles representando um poderoso petardo que faria o "tanque inimigo" em pedaços.

Chegou o grande dia: oculto pelo portão de sua casa, ele aguardou, pacientemente, a chegada do inimigo. Logo aproximou-se um Chevrolet 40 (novidade daquele ano), reluzindo. Quando o veículo se colocou ao alcance da mira, Miguelzinho comandou:
-Primeira bateria, fogo!
E lá se foi uma poderosa "bomba", rolando pela rua, em direção ao veículo. O motorista, sem saber do que se tratava, desviou-se do objeto desconhecido, que avançava ameaçadoramente em sua direção. Após algumas buzinadas, desapareceu.
Um segundo veículo aproximou-se, e logo ouviu-se a voz de comando:

-Segunda bateria, fogo! e já rolou o coco número 2 em direção ao novo inimigo.

Assim foi durante toda a tarde, até esgotar-se a munição. O atirador divertia-se com o susto pregado aos motoristas, e resolveu continuar com a defesa da pátria, nos próximos dias.

Tudo parecia perfeito, salvo o olhar pensativo e tristonho de Cacildinha, que observava, embevecida, a dedicação de Miguelzinho ao heroico projeto.

-Qual a razão disso? perguntou.
-Ora, estou bombardeando os tanques inimigos, não está vendo?
-Mas, com cocos?
-Claro que não, respondeu zombeteiro. Mulher tem cada uma! Imagine, coco! São bombas H3XYZ4, de alto poder destrutivo! É só ter muita fé, que os cocos se transformam em poderosas bombas. Já sou um herói conhecido no país inteiro!
Cacildinha retirou-se, calada. Se Miguelzinho prestasse um pouco de atenção, ficaria preocupado com o olhar brilhante da menina. Mas ele estava ocupado com a salvação nacional, e nada mais merecia sua atenção.

No outro dia, o aparato militar de Miguelzinho já estava posicionado. Novas bombas, devidamente numeradas, já aguardavam para serem disparadas. Aproximou-se um veículo, e logo ouviu-se a frase heroica:

-Primeira bateria, fogo!
Quando o petardo alcançou a roda do veículo, ouviu-se uma explosão ensurdecedora, cujo eco alertou todo o bairro.
Horrorizado, Miguelzinho fechou os olhos, muito assustado, quase desfalecido, e só conseguia balbuciar:
-Pai Nosso, que estás nos céus....
Seguiu-se um grave silêncio, e o ar impregnou-se do cheiro de algo queimado.
Após momentos intermináveis, finalmente, Miguelzinho abriu temerosamente os olhos, para avaliar a tragédia da "guerra". Mas, com surpresa, viu que estava olhando para a rua deserta, tendo a seu lado apenas a amiga Cacildinha, que o acalmava, dizendo:
-Está tudo bem agora, meu herói!
- Você ouviu a explosão? perguntou, aguardando cautelosamente a resposta.

-Sim, eu ouvi quando sua bomba explodiu; parecia um tiro de canhão, e o inimigo fugiu apavorado. Você tem muita fé mesmo, não é?

-E aquele veículo, que estava se aproximando?
-Acho que a motorista quase morreu de medo, mas depois deu um sorriso amarelo e continuou seu caminho...
-Coisas de mulher, resmungou Miguelzinho.
-Coisas que você nem imagina, respondeu Cacildinha, enquanto revia, mentalmente, sua própria estratégia: uma bombinha de festa, com mais efeito sonoro do que potencial lesivo, sendo lançada junto com a "bomba" de Miguelzinho, com perfeito sincronismo e precisão que somente elas poderiam executar...

Aliviado e sem imaginar a artimanha de Cacildinha, Miguelzinho desistiu da guerra e voltou à vida civil. Afinal, tomar água de coco gelada em companhia de Cacildinha é mais prazeroso ... e muito menos assustador!

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