DA POLÊMICA SOBRE O TÍTULO DE DUQUE DE ADIS ABEBA

Da polêmica sobre o título de Duque de Adis Abeba[1]

Mário de Méroe


Introdução

A concessão do título ducal de Adis-Abeba (ou Adis Abeba) foi uma decorrência do domínio da Itália sobre a Etiópia entre 1935/1941. Nessa ocasião, o rei da Itália, assumiu, ipso facto, o título de Imperador da Etiópia, na plenitude de seus direitos dinásticos. Politicamente, um fato lamentável, porém inquestionável. Para os estudiosos de Direito Nobiliário, entretanto, surgem algumas indagações, que merecem estudos.

Dos fatos

No dia 3 de outubro de 1935 as tropas da Itália fascista, comandadas pelo General Emilio de Bono, partindo da Eritréia, na África Oriental, atacaram a Etiópia, uma das nações mais pobres do continente.

Apesar da superioridade militar da Itália, do ponto de vista tecnológico, as forças etíopes apresentaram mais resistência do que os italianos tinham previsto, que os levou a utilizar armas químicas (gás de mostarda), inclusive nas populações civis.

O desvario militar do Duce, não foi um simples passeio ou um desfile. Apesar de bem armados com equipamento moderno, os invasores enfrentaram tenaz resistência do povo etíope, o que frustrou o desejo de Mussolini em realizar uma campanha rápida. A guerra provocou a morte de mais de meio milhão de mortos entre os africanos, e cerca de 5.000 baixas do lado italiano, ou seja, o agressor pagou 1% das vidas humanas do total que sacrificou do agredido.

No início 1936, as tropas italianas, agora sob o comando do General Pietro Badoglio, usando armas químicas, juntamente com poderoso armamento aéreo de alta precisão, atacou novamente, e infligiu implacável derrota aos etíopes. Ressalte-se que a maior parte das forças que tentou deter a invasão italiana, consistia em guerreiros tribais e da milícia, armados com lanças e obsoletas espingardas, chefiados pelas autoridades provinciais. Os soldados do exército regular marcharam descalços, sem apoio de qualquer sistema logístico.

Veja-se o testemunho chocante:

"As tropas do Imperador representavam perigo insignificante. Contra 400 aviões italianos, Hailé Selassié só podia opor 13, dos quais apenas oito, todos desarmados, chegaram a deixar o solo. De seus 250.000 soldados, somente a quinta parte dispunha de armas modernas. Contra o implacável Badoglio, que não teve escrúpulo de lançar gás de mostarda nos flancos de seu avanço, paralisando milhares de homens das tribos da região, os abissínios não tinham a menor chance de vencer"[2]

A covarde agressão à Etiópia expôs a fragilidade da Sociedade da Liga das Nações, que fora fundada em 1919, com a finalidade específica de evitar que potências belicistas, em seus surtos de expansionismo, destruíssem as mais fracas. O vergonhoso episódio significou o fim da Liga das Nações e o prenúncio da Segunda Guerra Mundial.

É significativo o sentido da mensagem que Mussolini enviou ao General Badoglio em 30 de dezembro de 1934:

"De um problema diplomático (o litígio entre a Itália e a Etiópia), tornou-se um problema de força, um problema histórico, que importa resolver pelo único modo pelo qual os problemas sempre terminam resolvidos - pelo emprego das armas."[3]

A vitória italiana foi anunciada em 9 de maio de 1936, e o triste butim da vergonhosa empreitada foi assim partilhado: o rei da Itália, Víttorio Emanuele III, assumiu o título de imperador de Etiópia; Mussolini foi considerado o fundador do novo império, denominado África Oriental Italiana, formado pelas possessões da Etiópia, Somália e Eritreia, o que fazia parte de seu sonho ensandecido de restaurar o antigo império romano... (durante a Segunda Guerra Mundial, a Itália perdeu as colônias, e o utópico "império" do alucinado Duce esboroou-se). O General Badoglio (1871-1956), prestigioso militar italiano, que lutou na Primeira Guerra Mundial e, em 1922, foi designado embaixador para o Brasil, naquela ocasião foi agraciado com alta honraria nobiliária.

Da polêmica (sob o ponto de vista nobiliário)

Por ocasião da conquista da Etiópia, o General Pietro Badoglio foi agraciado, a seu pedido, com o título de Duque de Adis Abeba, sendo também nomeado vice-rei da Etiópia. Surge, então, para os estudiosos de Direito Nobiliário, a seguinte questão: Pietro Badoglio, cidadão italiano, recebeu um título de nobreza, com predicado territorial situado terra estrangeira (Etiópia), por sua atuação em campo de batalha, a serviço do rei da Itália.
Vittorio Emanuele III,  por direito de conquista (?), assumiu o título e a autoridade legal de Imperador de Etiópia, embora sem o reconhecimento internacional.

O mandato real sobre a Etiópia foi de curta duração, de 09 de maio de 1936 a 05 de maio de 1941, quando o trono etíope foi restaurado na pessoa do imperador Hailé Selassié I.

Nesse interregno (1936/1941) Vittorio Emanuele foi imperador de fato da Etiópia, por direito de conquista(?), e Hailé Selassié tornou-se Imperador de Direito Histórico, em exílio, sem renúncia nem reconhecimento da situação de fato (perda da posse territorial), conservando assim, ambos os soberanos, a titularidade da fons honorum, embora por razões diferentes.

Assim sendo, o título de Duque de Adis Abeba, capital da Etiópia, poderia ter sido concedido a um cidadão italiano?

Considerando-se as condições do impiedoso ataque contra uma nação praticamente indefesa, imperdoável genocídio fomentado pelo delírio de um ditador sanguinário, parece-nos inoportuno que , imediatamente após o conflito, tal "vitória" fosse contemplada com uma honraria nobiliárquica, acrescentando uma imerecida afronta ao povo vencido. Tais são os males colaterais provocados pelas guerras! 

As deploráveis condições da conquista e a exacerbação proposital dos méritos militares da campanha não teriam esmaecido o espírito que deve nortear as concessões nobiliárias? O inoportuno agraciamento e a escolha do predicado territorial foram abertamente questionados em muitos países. No Brasil, um artigo irônico, intitulado "Duque de Adis-Abeba! "..., assinado por Decio Vianna, foi veiculado pelo periódico O Momento, edição de 21 de agosto de 1943[4], o que mostra a grande surpresa e indignação de quantos tomaram conhecimento do fato.

Entretanto, em uma avaliação estritamente técnica e isolada daquele contexto macabro, o rei exerceu validamente suas prerrogativas de fons honorum, ao agraciar o chefe militar dessa campanha.

A invasão da Etiópia pela Itália em 1935 foi uma traição política e militar, considerando os acordos celebrados entres esses países no ano de 1928. Por sua vez, a Liga das Nações condenou o ato, mas não fez o menor esforço para impedi-lo. O governo italiano apenas recebeu uma condenação formal da Liga, mas sua omissão quanto a medidas concretas pareceu um encorajamento para aquele injustificável ato de desumanidade. Em 1936, o imperador Selassié se viu forçado a se retirar para o exílio na Inglaterra, de onde continuaria a luta diplomática para recuperar seu trono.

Diversos países condenaram a atitude da Itália, mas tratava-se apenas de protestos formais, meramente programáticos.

Para recuperar sua condição de nação soberana, a Etiópia contou com o apoio da Inglaterra, mas, sobretudo, com as forças de resistência etíopes e ajuda militar norte-africanas, Hailé Selassié retomou Adis Abeba em 5 de maio de 1941, sob emocionada aclamação das tropas e do seu povo. Para a Itália, foi a suprema humilhação política.

Entretanto, sob o prisma do Direito Nobiliário, a coisa muda de enfoque. Preliminarmente, deve ser esclarecida a fonte da qual emanou a honraria: O título foi concedido por Vittorio Emanuele III, na qualidade de Imperador da Etiópia, ou de Rei da Itália?

Anote-se que, como soberano da Etiópia seu reinado foi até 1941, e na Itália permaneceu até 1946.

A África Oriental Italiana foi instituída como entidade política e administrativa de 1936 a 1941, mas não consta que tenha unificado as coroas.

Assim, como imperador (de fato) da Etiópia, Vittorio Emanuele se constituía em autoridade dinástica, o mesmo ocorrendo com relação ao trono da Itália, ambos ornamentados com a fons honorum correspondente.

A coroa da Itália foi transmitida ao seu filho Umberto II, e após a deposição deste, passou aos seus descendentes, seguindo a fórmula imperecível do direito dinástico. Mas nada há nos registros sobre a subsistência do título de imperador da Etiópia após a expulsão dos italianos em 1941.

Segundo um registro, por ocasião da vitória da Itália, o Duce teria comunicado ao povo italiano que o Rei Vittorio Emanuele havia conquistado o título de Imperador da Abissínia, e que esse título seria transmitido aos seus sucessores.

Mas isso era o discurso de um ditador sanguinário, que não hesitou em sacrificar a honra dos italianos para massagear o ego do hesitante monarca. Apesar dessa nódoa, o rei Vittorio Emanuele III era amado por grande parte dos italianos.

Considerando esses antecedentes morais e diplomáticos e as regras gerais do direito dinástico, o título de Imperador da Etiópia, usurpado, manu militari de seu legítimo titular, ainda vivo e em exílio dinástico, teria sido realmente, integrado ao patrimônio honorífico da Família Real Italiana? Não há nenhum registro de que esse título de domínio tenha sido reconhecido por alguma nação ou organismo internacional. A própria Liga das Nações, omissa quanto ao genocídio etíope, reconheceu a vitória da Itália sobre a Etiópia como "fato consumado", mas não ousou profanar a sagrada tradição do povo vencido.

É sintomático, também, que a biografia oficial de Umberto II, último rei da Itália, não faça menção a esse título de domínio, talvez para não deslustrar a honrosa memória de sua Casa...

A crueza da guerra e as glórias das honorificências seguem caminhos diferentes e têm parâmetros próprios de avaliação, especialmente se apreciados muito tempo após suas ocorrências.

Mas, para efeito de estudos nobiliários, Vittorio Emanuele foi Imperador DE FATO da Etiópia, de 09/maio/1936 a 05/maio/1941, implicitamente reconhecido pela Liga das Nações, que considerou a invasão da Etiópia como fato consumado. Assim, a concessão do título ao seu soldado teria sido válida e legítima, do ponto de vista do Direito Nobiliário. As acerbas críticas que o governo da Itália da época mereceu se referem à campanha militar de conquista da Etiópia, nos moldes em que foi realizada. Nada afeta, porém, a honorabilidade da concessão nobiliária, repetimos, válida e legítima, bem como sua sucessão.

Em nossas pesquisas, colhemos informações de que o título de Duque de Adis Abeba foi concedido em caráter hereditário. Assim, tendo sido criado com cláusula de transmissibilidade aos descendentes, ele continua válido em todo seu esplendor honorífico, não obstante a autoridade dinástica que o instituiu tenha sido despojada do trono etíope.

Em casos análogos, o monarca ex-reinante tem semelhança com uma fonte de água que, enquanto ativa, jorra o precioso líquido. Quando se extingue, a produção cessa, mas a corrente já emitida continua seguindo seu curso, ad infinitum.

Aditamento

Como dados complementares, reproduzimos, em tradução livre, as informações abaixo, obtidas de fonte pública:

Duque de Addis Abeba

Duque de Addis Abeba (italiano: Duca di Addis Abeba ) é um título hereditário, da nobreza italiana, que foi concedido pelo rei Victor Emmanuel III, para o marechal Pietro Badoglio em 5/05/1936, como prêmio pela vitória das tropas italianas em Addis Abeba, em decorrência da conquista italiana da Etiópia.

Em 5 de maio de 1936, Benito Mussolini declarou o Rei Victor Emmanuel III da Itália, como o novo Imperador da Etiópia e esta, como uma província italiana. Na mesma ocasião, o marechal Pietro Badoglio foi nomeado o primeiro vice-rei de Etiópia e foi feito "duque de Addis Abeba", pelo rei (Victor Emmanuel III, nota do a.).

Os duques de Addis Abeba:

Pietro Badoglio, 1º duque de Addis Abeba (1871-1956), 1º titular.

Pietro Badoglio, 2º Duque de Addis Abeba (1939-1992). Neto do 1º titular

Flavio Badoglio, 3º Duque de Addis Abeba (nascido em 1973). Filho do 2º titular

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Duke_of_Addis_Abeba


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Excerto do livro "A Lendária Etiópia: A Casa de Salomão e da rainha de Sabá - raízes da Coroa Imperial da Etiópia, em exílio dinástico", de Mário de Méroe - no prelo.

[2] Collier, Richard, Duce! Ascensão e Queda de Benito Mussolini, Distr. Record, Rio de Janeiro, 1971, p.166.

[3] Disponível em: https://educaterra.terra.com.br/voltaire/seculo/2003/04/03/001.htm. Acesso: 06/06/2017.

[4] Disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/104523/per104523_1943_00543.pdf, acesso em 07/06/2017.


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